É comum encontrarmos, hoje em dia, professores, comentaristas, críticos que dizem que a literatura brasileira é muito
difícil para nossos jovens estudantes, seja a literatura do século XIX, seja do
século passado (não tão passado, pois grita às nossas costas!), ou mesmo deste
debutante século.
Particularmente, Machado de Assis, nosso grande
representante literário, fundador da Academia Brasileira de Letras, um exemplo
de sucesso e empreendedorismo (para utilizar a linguagem mais na moda hoje),
considerado gênio por muitos leitores e estudiosos “lá de fora” (Harold Bloom o
coloca entre Shakespeare, Dante,
Dickens, Balzac e outros) é rechaçado às custas de sua linguagem! Mas
será mesmo somente uma questão de linguagem?
Entretanto, não há escritor mais sucinto e simples na linguagem que Machado em suas
descrições e narrativas, se considerarmos os ingleses, os franceses ou mesmo os
portugueses da época. Nada é demais no
autor de Dom Casmurro, nada excede, nada sobra, ao contrário, às vezes, com uma
só frase diz tudo, o que torna algumas delas emblemáticas. E arrisco: a
literatura machadiana, mesmo a brasileira como um todo, é tão difícil quanto
qualquer boa literatura de qualquer país.
O que dá uma ideia de dificuldade, de inacessibilidade é o
fato de não ser uma literatura de aeroporto ou de consultório dentário como são
os jornalismos literários americanos vendidos como best sellers mesmo antes de
serem tão vendidos (best sellers virou rótulo de produto como “sem lactose”,
“sem glúten” ou “orgânico”; consumação obrigatória!).
Some-se a isso, o despreparo de professores, pedagogos e
tutores da língua portuguesa e/ou literatura vernácula, a descontextualização
histórica às custas de um pobre ensino dos diversos tipos de história nacional e
mais todas as questões que os jovens copiam de outras sociedades numa espécie
de compulsão inconsciente coletiva através de filmes, mídias, redes sociais. Realmente, não se lê a literatura brasileira, relegando-a a nichos acadêmicos
específicos (às vezes, só às vezes,
penso que nem os formandos em Letras leem literatura brasileira de
qualquer época... assusto-me com meus próprios pensamentos!). Que pena! nos despersonalizamos e desnacionalizamos com capas de outros nacionalismos globais vigentes.
Entretanto, a maior parte da literatura de Machado de Assis
foi publicada em folhetins¹, jornais populares da época e/ou revista de senhoras.
Imagino as senhoras de papelotes nos cabelos em suas casas, tomando limonada e discutindo as
últimas publicações folhetinescas de Machado e comentando sobre as peripécias de uma ou outra personagem - a insensatez de Helena, a dissimulação de Capitu, as loucuras de Virgília, a submissão de Estela e outras. Ou, em casas de chá, depois das compras,
lendo em conjunto a última publicação da Gazeta Mercantil, por exemplo: A Cartomante ou A teoria do Medalhão, tão desconcertantes na época. Por isso, é
inconcebível que os nascidos no final do século XX ou no início deste século não
consigam ler as obras de Machado ou de seus contemporâneos. É passar um
atestado de ... deixemos para lá e voltemos a análise da narrativa machadiana pelo conto A Cartomante..
A Narrativa inicia-se com a citação de Hamlet de
Shakespeare: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisa entre o céu e a terra
do que sonha nossa vã filosofia.” Nesta única e primeira frase do conto está
posto e resumido o conteúdo de todo conto. Logo de início, Machado vai deixar
em aberto qualquer postura em defesa desta ou daquela crença, sem tomar partido
algum, sabiamente conduzirá o leitor a tirar suas próprias conclusões. Entretanto, o mote foi colocado: não se deixa levar por ideias fixas e pré concebidas, abra-se às possibilidades da existência.
Assim, desenvolve o conto, apresentando as personagens
envolvidas na questão além da tal cartomante. São três e formam um triângulo amoroso.
Vilela, Camilo e Rita que em alguns minutos viverão uma pequena tragédia – “três
nomes, uma aventura e nenhuma explicação.”
Os dois personagens masculinos são amigos de infância.
Vilela casa-se com Rita e Camilo... “uniram-se os três. Convivência trouxe
intimidade”. Assim, de forma bem econômica e clara, Machado resume a relação
entre os três personagens ficcionais. Como todo adultério e triângulo amoroso não ficam entre quatro
paredes e atravessam assustadoramente até ruas e bairros, o caso entre Camilo e
Rita é sabido, com exceção de Vilela (óbvio, para não fugir à tradição do cônjuge traído).
E como ficamos sabendo disso? Machado nos dá a conhecer de
alguns bilhetes escritos a Camilo evidenciando a situação. Rita consulta uma cartomante
e tranquiliza-se. Camilo continua a
receber mais alguns, mas Rita desencoraja-o a tomar qualquer atitude junto ao
marido com o argumento: “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem
papel; só o interesse é ativo e pródigo” , fazendo o amante concluir que
deveria ser de algum pretendente enciumado dela. Mas ele, assustado, afasta-se um tempo da convivência do casal e
retorna atendendo ao apelo do amigo que lhe estranha a ausência. Até aqui, Machado mostrou o quadro de toda a situação. Com frases "emblemáticas" revela ao leitor o "estado" em que as relações estão.

O encontro de Camilo com a cartomante é cheio de evasivas. A
história se desenrola mais na cabeça do leitor que realmente pelas palavras da
narrativa. As cartas nada revelam que já não possa ser “lido” no rosto da
personagem. A leitura da cartomante é construída pelo diálogo sucinto entre os
dois. E como à cartomante interessa mais o dinheiro que a veracidade de seu
ofício, ela satisfaz o cliente dizendo o que ele espera ouvir. Qualquer
interpretação além disso pode ser possível, mas sem apoio claro do autor.
No final, consuma-se a tragédia. Tragédia sim, pois Camilo atende ao chamado de Vilela sem
expectativas negativas, sem nenhuma defesa, pois ele deduziu o que não lhe
foi dito no sobrado da sibila. Tragédia
dramática porque acaba em mortes o conto que começou com especulações
filosóficas. Entretanto, não podemos esquecer que em Hamlet, as mortes também
se sucedem, embora a intenção seja o questionamento existencial do príncipe.
Mas isso é assunto para outra crônica literária.
Enfim, um conto simples, de época, mas atual, pois
adultérios, vinganças, mortes de amantes e consultas a oráculos ainda hoje
estão presentes na literatura atual como no dia a dia dos moradores deste país.
A linguagem não é rebuscada, ao contrário, simples com um ou outro termo que um
simples dicionário, mesmo on line resolve. Este e outros contos machadianos são
imperdíveis para uma reflexão metafísica e uma ilustração geral de qualquer
cidadão escolarizado e que pretende ingressar nos níveis superiores não só escolares, mas da vida.