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domingo, 8 de novembro de 2015

Há mais coisa na nossa literatura que nos contam outras literaturas



É comum encontrarmos,  hoje em dia,  professores, comentaristas, críticos  que dizem que a literatura brasileira é muito difícil para nossos jovens estudantes, seja a literatura do século XIX, seja do século passado (não tão passado, pois grita às nossas costas!), ou mesmo deste debutante século.
Particularmente, Machado de Assis, nosso grande representante literário, fundador da Academia Brasileira de Letras, um exemplo de sucesso e empreendedorismo (para utilizar a linguagem mais na moda hoje), considerado gênio por muitos leitores e estudiosos “lá de fora” (Harold Bloom o coloca entre Shakespeare, Dante,  Dickens, Balzac e outros) é rechaçado às custas de sua linguagem! Mas será mesmo somente uma questão de linguagem?
Entretanto, não há escritor mais sucinto e simples na linguagem que Machado em suas descrições e narrativas, se considerarmos os ingleses, os franceses ou mesmo os portugueses da época.  Nada é demais no autor de Dom Casmurro, nada excede, nada sobra, ao contrário, às vezes, com uma só frase diz tudo, o que torna algumas delas emblemáticas. E arrisco: a literatura machadiana, mesmo a brasileira como um todo, é tão difícil quanto qualquer boa literatura de qualquer país.
O que dá uma ideia de dificuldade, de inacessibilidade é o fato de não ser uma literatura de aeroporto ou de consultório dentário como são os jornalismos literários americanos vendidos como best sellers mesmo antes de serem tão vendidos (best sellers virou rótulo de produto como “sem lactose”, “sem glúten” ou “orgânico”; consumação obrigatória!).
Some-se a isso, o despreparo de professores, pedagogos e tutores da língua portuguesa e/ou literatura vernácula, a descontextualização histórica às custas de um pobre ensino dos diversos tipos de história nacional e mais todas as questões que os jovens copiam de outras sociedades numa espécie de compulsão inconsciente coletiva através de filmes, mídias, redes sociais. Realmente, não se lê a literatura brasileira, relegando-a a nichos acadêmicos específicos (às vezes, só às vezes,  penso que nem os formandos em Letras leem literatura brasileira de qualquer época... assusto-me com meus próprios pensamentos!). Que pena!  nos despersonalizamos e desnacionalizamos com capas de outros nacionalismos globais vigentes.
Entretanto, a maior parte da literatura de Machado de Assis foi publicada em folhetins¹, jornais populares da época e/ou revista de senhoras. Imagino as senhoras de papelotes nos cabelos em suas casas, tomando limonada e discutindo as últimas publicações folhetinescas de Machado e comentando sobre as peripécias de uma ou outra personagem - a insensatez de Helena, a dissimulação de Capitu, as loucuras de Virgília,  a submissão de Estela e outras. Ou, em casas de chá, depois das compras, lendo em conjunto a última publicação da Gazeta Mercantil, por exemplo: A Cartomante ou A teoria do Medalhão, tão desconcertantes na época. Por isso, é inconcebível que os nascidos no final do século XX ou no início deste século não consigam ler as obras de Machado ou de seus contemporâneos. É passar um atestado de ... deixemos para lá e voltemos a análise da narrativa machadiana pelo conto A Cartomante..
A Narrativa inicia-se com a citação de Hamlet de Shakespeare: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisa entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.” Nesta única e primeira frase do conto está posto e resumido o conteúdo de todo conto. Logo de início, Machado vai deixar em aberto qualquer postura em defesa desta ou daquela crença, sem tomar partido algum, sabiamente conduzirá o leitor a tirar suas próprias conclusões. Entretanto, o mote foi colocado: não se deixa levar por ideias fixas e pré concebidas, abra-se às possibilidades da existência.
Assim, desenvolve o conto, apresentando as personagens envolvidas na questão além da tal cartomante. São três e formam um triângulo amoroso. Vilela, Camilo e Rita que em alguns minutos viverão uma pequena tragédia – “três nomes, uma aventura e nenhuma explicação.”
Os dois personagens masculinos são amigos de infância. Vilela casa-se com Rita e Camilo... “uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade”. Assim, de forma bem econômica e clara, Machado resume a relação entre os três personagens ficcionais. Como todo adultério e triângulo amoroso não ficam entre quatro paredes e atravessam assustadoramente até ruas e bairros, o caso entre Camilo e Rita é sabido, com exceção de Vilela (óbvio, para não fugir à tradição do cônjuge traído).
E como ficamos sabendo disso? Machado nos dá a conhecer de alguns bilhetes escritos a Camilo evidenciando a situação. Rita consulta uma cartomante  e tranquiliza-se. Camilo continua a receber mais alguns, mas Rita desencoraja-o a tomar qualquer atitude junto ao marido com o argumento: “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo” , fazendo o amante concluir que deveria ser de algum pretendente enciumado dela. Mas ele, assustado,  afasta-se um tempo da convivência do casal e retorna atendendo ao apelo do amigo que lhe estranha a ausência. Até aqui, Machado mostrou o quadro de toda a situação. Com frases "emblemáticas" revela ao leitor o "estado" em que as relações estão.
Num determinado dia, Camilo recebe o aviso de Vilela – “Venha já, já, à nossa casa, preciso falar-te sem demora.” Inicia-se o clímax do conto. É a partir daí que o autor vai desenvolver sua teoria exposta no início da narrativa, apresentando pequenos fatos ou detalhes que conduzem não apenas a personagem, mas o leitor também. Todas as emoções vão passar pelo corpo e mente de Camilo e, de forma bem resumida, o narrador nos dá a conhecer quase todas: especulação, antecipação de fatos, inquietação, nervosismo e medo. A narrativa muda de tom para um thriller. Uma carroça vira e impede a passagem do tílburi que estanca exatamente em frente ao sobrado da cartomante. Machado conduz a narrativa cuidadosamente para que o leitor sinta a mão do destino através das coincidências circunstanciais. Parece que tudo está determinado ou o acaso está atuando como num lance de dados.
O encontro de Camilo com a cartomante é cheio de evasivas. A história se desenrola mais na cabeça do leitor que realmente pelas palavras da narrativa. As cartas nada revelam que já não possa ser “lido” no rosto da personagem. A leitura da cartomante é construída pelo diálogo sucinto entre os dois. E como à cartomante interessa mais o dinheiro que a veracidade de seu ofício, ela satisfaz o cliente dizendo o que ele espera ouvir. Qualquer interpretação além disso pode ser possível, mas sem apoio claro do autor.
No final, consuma-se a tragédia. Tragédia sim,  pois Camilo atende ao chamado de Vilela sem expectativas negativas, sem nenhuma defesa, pois ele deduziu o que não lhe foi dito no sobrado da sibila.  Tragédia dramática porque acaba em mortes o conto que começou com especulações filosóficas. Entretanto, não podemos esquecer que em Hamlet, as mortes também se sucedem, embora a intenção seja o questionamento existencial do príncipe. Mas isso é assunto para outra crônica literária.
Enfim, um conto simples, de época, mas atual, pois adultérios, vinganças, mortes de amantes e consultas a oráculos ainda hoje estão presentes na literatura atual como no dia a dia dos moradores deste país. A linguagem não é rebuscada, ao contrário, simples com um ou outro termo que um simples dicionário, mesmo on line resolve. Este e outros contos machadianos são imperdíveis para uma reflexão metafísica e uma ilustração geral de qualquer cidadão escolarizado e que pretende ingressar nos níveis superiores não só escolares, mas da vida.


sábado, 7 de novembro de 2015

Romeu e Julieta: amor ou poder?



É comum considerar essa tragédia de William Shakespeare como versando sobre o amor, o amor impossível ou outras qualificações acerca de amores não realizados. Mas se lermos com mais atenção, vamos perceber que não se trata de uma tragédia amorosa e sim de uma tragédia sobre poder, sobre a desobediência ao poder. O pretexto para se pensar essa questão é o frágil amor adolescente, mas a reflexão mais profunda e atenta é sobre o conflito entre o poder político  instituído (realeza) e o poder econômico.
O tema do amor é tratado de forma displicente, a princípio, pelo autor da tragédia. Romeu que é um Montecchio já aparece em cena apaixonado de outra jovem que não chegamos a conhecer a não ser pelas falas do rapaz amoroso. Mercúrio, parente do príncipe de Verona que governa a cidade – um principado – é a antítese de Romeu, opondo sempre o discurso apaixonado de Romeu ao seu, que em geral  banaliza as relações amorosas, as paixões desmedidas, os amores impossíveis.
Da mesma forma, Julieta Capuleto, família inimiga dos Montecchio, tem como antagonista sua ama, mulher prática, vivida que não crê em paixões de alma, em amores à primeira vista e sim nas realizações carnais que levam a uma satisfação imediata. A ajuda que ela dá à jovem é para a realização prática desse amor.  Uma visão de mundo bem comum que se opõe em contraponto à visão idealizada de menina inexperiente e ingênua que é Julieta, despreparada para a vida.
O quadro se põe da seguinte forma: Romeu está apaixonado de Rosalinda, parente dos Capuletos e Julieta está sendo prometida a Páris, parente do príncipe de Verona. Os Capuletos estão dando uma festa e os Montecchio, óbvio, não são convidados, mas Romeu e seu primo vão assim mesmo, como “penetras”. Quando os olhos de Romeu batem sobre a figura de Julieta, ele imediatamente se esquece de Rosalinda, que nem é notada por nós pois não há mais menção alguma dela na festa. De repente, Romeu cai de amor por esta nova adolescente - Julieta Capuleto.Logo, se a peça de Shakespeare fosse sobre amor, nós poderíamos concluir da efemeridade das paixões, da finitude dos jovens amores, da inconsequência das palavras exageradas em juras de amor, do absurdo dos amores platônicos e das promessas que não se cumprem. 
 Na realidade, a peça é tensa por outro motivo e o clímax da tragédia está relacionado a um destino que não se pode fugir como uma catarse. Pois o trágico está fundamentado exatamente neste ponto – há uma desmedida (a hybris) e ela provoca um desequilíbrio. Este pede uma ação para que o equilíbrio se restabeleça. O elemento que restabelece o equilíbrio é determinado pelo que os gregos chamaram de moyra, destino que não se pode mudar e que tem que ser cumprido para o bem de todos, pois dele depende o curso normal da vida. Está feita a catarse (termo médico e filosófico que significa libertação, expulsão ou purgação). A persona escolhida para esta função é em si trágica e de forma alguma pode modificar, alterar ou negar o destino. Ela está predeterminada pela força da vida. Neste caso, duas pessoas estão envolvidas porque a persona catártica é o amor entre eles.
Embora concentremos nossos olhos românticos sobre as declarações de amor entre Romeu e Julieta, em particular na cena do balcão e na noite do primeiro encontro de amor consumado, as aparições (3) do príncipe de Verona são muito mais importantes e significativas para o desenrolar da tragicidade exposta.  Seus discursos não são longos e em cada aparição, ele chama à razão os envolvidos para a responsabilidade social que as famílias ricas da cidade têm e a obrigação de obediência a despeito da posição social que ocupam.
No primeiro discurso ele alerta que já 3 vezes tem vindo interferir e que punirá as famílias responsáveis pela desordem. No segundo, quando acontece uma morte – não trágica – que intensifica o desequilíbrio social, ele é mais enfático e pune uma das famílias, sentenciando Romeu ao exílio. Este é o ato que desencadeia a solução trágica. A desobediência ao poder maior deve ser punida, a paixão desenfreada, seja ódio ou amor, também deve ser punida, pois dela deriva a demência, a imprudência, a desmedida que provoca a desordem social.
A última aparição do príncipe de Verona é já no restabelecimento do equilíbrio pela morte dos representantes da paixão desmedida desequilibrante – Romeu e Julieta - o que nos confirma a tese de que a peça versa sobre o poder e não sobre amor.  Ele apura os fatos e no final diz: “Esta manhã nos trouxe paz sombria: esconde o sol o seu rosto de pesar, serei clemente ou rijo a contragosto, e esta historia há de viver na memória de todos – a história de Romeu e Julieta.” Encerra a cena, o ato, a peça. Cumpriu-se o destino e a tragédia. Retorna o equilíbrio da vida, na paz conseguida por força do poder constituído.